Por Márcio Carvalho *

Sempre percebemos a cidade como extensão do lar, um palco para nossas atividades, encontros e logística. A extensão pública de nossa realidade privativa.

A cidade de fato evoluiu historicamente como o lugar do encontro, das trocas, da atividade econômica e criativa onde coabitamos. A vida cosmopolita, em oposição à ancestralidade rural, centra na cidade a orquestração da sociedade, sugere o urbano como a nova natureza humana, para assim nos reconhecermos seres urbanos humanos.

Acatamos uma nova natureza feita de infraestrutura construída que nos serve de manto contra intempéries e nos traz certo conforto físico, mas certamente peca em espelhar nossa identidade nos desenhos de suas edificações. Uma natureza que nos escasseou o tempo e trouxe o trânsito como indicador de qualidade de vida, medindo curtas distâncias em horas.

Neste crescente processo de urbanização de nossos valores, nos adequamos à logística da cidade e mal percebemos o quanto realmente a cidade afastou-se de nossa natureza ancestral, do verde da grama, do reflexo da água, da sombra da árvore, da contemplação. Quanto maior a cidade, mais afastados estamos disto, via de regra.

Aderimos ao sonho do apartamento próprio em contraste ao sonho de nossos pais. Esta inquestionável normalidade que impõe à todos a dura escolha entre a diminuição da casa e do tempo no trânsito ou optar pelo oposto. Afinal, em um mundo contemporâneo em frenético movimento, nossos percursos diários nos definem. Precisamos nos manter em movimento. Parar não é uma alternativa.

Mas fomos parados. Não por escolha, mas por imposição de uma pandemia.

A realidade superou a ficção e nos vimos confinados em nossas casas e obrigados a parar, observar e nos percebermos cercados por nossas escolhas. Pudemos entender melhor que a casa é de fato a materialização destas escolhas, conscientes ou não. Ela manifesta externamente os nossos valores internos. Ou deveria.

Estamos sendo exaustivamente confrontados com a natureza que escolhemos. Um convite forçado à abrir os olhos e desligar o antigo normal enquanto encontramos novas formas para neutralizar distâncias e redefinir perto e longe diante de nossos valores pessoais e novas logísticas coletivas.

Em pouco tempo nossas vidas foram transformadas. Nos adaptamos em tempo recorde à remotização profissional, tele presença, refeições, limpeza, escola dos filhos… tudo em casa.

Reconhecemos a nossa dependência do sistema que nos cerca e automatiza a vida. Reavaliamos padrões de consumo e enxergamos oportunidades em meio à dificuldade. Uma crise carregada de aprendizado, como toda situação limítrofe. Em meio à tanta mudança, a maior transformação acontece dentro de nós. Paramos para relembrar como era o futuro imaginado por versões mais jovens de nós mesmos. Refletimos sobre as escolhas feitas e nos damos conta que o futuro que tínhamos por certo, mudou novamente. De fato, precisava mudar.

Na medida em que ocupamos por muito mais tempo a nossa casa, ela já não ocupa mais o mesmo lugar em nós. Ela se reveste de uma nova estranha familiaridade. Não parece o mesmo lugar de 2 meses atrás e virou peça integral na orquestração física de nossas vidas

E a questionamos. Questionamos seu tamanho, disposição dos cômodos, seu custo, bairro, cidade e os passos do vizinho em cima, enquanto ansiamos por uma paisagem mais natural em nosso entorno. Vista, árvores, rio, grama e pátio, como sonhavam nossos pais.

Já que o trânsito não mais nos define, neste momento, refletimos sobre nossas definições e nos permitimos reavivar desejos calados, planos engavetados, sonhos descontinuados e essencialmente paramos pra pensar sobre a arquitetura da nossa felicidade e revemos decisões.

Paulatinamente, em meio à uma pandemia, nos apropriamos de nós mesmos e rumamos para uma nova natureza humana, certamente menos frenética, talvez menos urbana.

Um novo olhar que trará novas escolhas na medida em que perto e longe se confundem e redefinem nosso tempo e espaço.

 

* Arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS, com especialização em Comunicação e Marketing para Mercado Imobiliário.
Sócio fundador da Smart – Arquitetura para a vida contemporânea, orientada a empreendimentos imobiliários de nicho com arquitetura contemporânea e autoral, atua nas áreas de produto, marketing e negócios.
Presidente da Associação dos Amigos do Museu de Arte Contemporânea do RS (AAMAC), presidente do Comitê de Construbusiness da Amcham e palestrante convidado do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU).

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